Recordações de um mestre, por Humberto Peixoto

No meado da década de trinta, estudante de medicina, resolvi ingressar, como aluno livre, na Escola de Belas Artes. Passava ela, na época, por grandes dificuldades financeiras, funcionando no velho casarão da rua do Tijolo e sobrevivendo graças a abnegação de seus renomados mestres.

Contratavam, então, com a penúria do ambiente: a riqueza de fragmentos e esculturas (cópias em gesso  reduzidas e fidedignas, das originais expostas nos museus europeus), de telas dos alunos que obtiveram o Prêmio Caminhoá e da alegria jovial dos estudantes dispersos nas salas de aula de modelagem, desenho e pintura.

Frequentei, ciclicamente, a escola enquanto funcionou no referido casarão. Lá, acompanhei sua renovação quando passou a fazer parte da Universidade Federal da Bahia, tendo tido a oportunidade de assistir os primeiros concursos para preenchimento de algumas cátedras. Os titulares existentes foram confirmados nos lugares.

Foi naquele recinto mágico, onde vi pela primeira vez Alberto Valença. Impressionaram-me: a sua figura esguia, seu ar tristonho, sua vasta cabeleira grisalha, seu traje escuro e seus passos lentos a observar atentamente, nos cavaletes, o trabalho de seus alunos; aprovando-os ou corrigindo-os mais com palavras do que com traços.

Tornamo-nos amigos. Descobri assim, que atrás daquela máscara, resultante de timidez, havia uma pessoa alegre, contadora de casos picantes e acima de tudo um profundo conhecedor da arte que abraçava.

Premiado, Valença viajou para a Europa, após a primeira grande guerra, onde foi estudar na Academia Julien em París. Lá, aproveitava suas horas de folga, principalmente nos frios dias de inverno, para frequentar os museus onde se detinha, demoradamente, analisando quadros e as características de seus autores, gravando-os em sua prodigiosa memória.

Disso tive a prova. Uma noite, indo ele jantar em minha casa, mostrei-lhe um pequeno quadro que acabara de adquirir de um "marchand" europeu que aqui fazia uma exposição depois da segunda guerra. O quadro não estava exposto porque tinha uma pequena rachadura em seu suporte de madeira. Fora-me mostrando porque suas dimensões correspondiam à da moldura que desejava comprar. Valença olhou-o demoradamente a certa distância e disse-me: - parece pintura de Georges Lerroux. Acertou no alvo.

Ainda na França, visitou a Bretanha onde fez belíssimas paisagens de Concarneau.

Referia-se, com admiração e elogios, aos mestres do passado que tivera oportunidade de ver. Porém foram os impressionistas a quem adorava com fervor que  influenciaram sua pintura.

Trabalho suas belas paisagens sempre ao ar livre, das sete às dez ou de 15 às 17h30, sempre do outono a primavera. O verão tropical, dizia ele, tem a luz muito intensa, prejudica a perspectiva aérea e torno a paisagem muito dura. No "atelier" pintava apenas os retratos e, em área coberta, os interiores das igrejas e dos conventos, todos eles de grande valor artístico.

Pintava sempre só, se ao seu lado estivesse um colega ou um discípulo parava de trabalhar.

Foi, não resta dúvida, ponto culminante nas artes plásticas da Bahia. Recebeu medalha de ouro no 1º Salão aqui realizado, pelo magnífico retrato de uma senhora residente no Rio de Janeiro, executado durante sua temporada na antiga capital da República.

Creio que, se houvesse permanecido na Europa, teria valorizado mais os movimentos artísticos lá iniciados no começo do século vinte.